A importância do irrelevante

A importância do irrelevante: usando elementos contingentes numa história

“É fim de tarde. Você está andando de volta para casa. Como sempre, há pouco movimento na rua. Aquele evento misterioso continua atormentando os seus pensamentos enquanto distraidamente segue caminhando com um olhar vago pelos muros. A certa altura, você percebe um sujeito parado ao lado de um poste.”

Numa partida de RPG, quando de repente alguma coisa é descrita chamando a nossa atenção sem dúvida ela é importante. Esse é um vício amplamente arraigado no nosso modo de contar histórias, ainda mais quando são narradas verbalmente. É como se tudo que fosse “mostrado” tivesse um lugar bem definido no andamento da trama. Na verdade, na maioria dos casos, é assim mesmo que funciona: tudo que é “dito” deve reforçar a curva dramática e empurrar os acontecimentos numa dada direção.

Vampire The Masquerade - A World Of Darkness - 04Afinal, precisa ser assim? Esse jeito pragmático e tradicional de contar uma história funciona tão bem por quê? Ou será que estamos tão acostumados a ele que é exatamente isso que esperamos e tudo que saia da linha nos parece estranho, ruim ou “mal construído”?

Uma vez me disseram que toda aventura de RPG, no final das contas, é uma história de mistério. Algo está para acontecer, os jogadores tentam desvendar o que está escondido na cabeça do mestre enquanto as personagens são empurradas pelos acontecimentos e por suas escolhas lógicas. Tomando essa hipótese como verdadeira, então um bom andamento da história seria escalar a curva dramática até chegar ao seu topo e alcançar a recompensa (descobrir a verdade). Porém, sendo também um jogo, as coisas não são assim tão simples.

Na vida real, existem infinitos elementos afetando nossos sentidos. Nossa capacidade de apreensão é limitada por certos níveis mínimos de excitação, como por exemplo nosso tato com relação às roupas que vestimos: estamos acostumados a estarmos vestidos e o nosso corpo não fica o tempo todo nos dizendo “tem algo encostando no teu ombro, nas tuas costas, na tua coxa, na sola do teu pé”. Também, por um tipo de valoração cultural, a gente presta mais atenção a certas coisas que em outras (símbolos de ostentação de poder, defeitos físicos, ameaças, etc.). Dependendo da nossa obsessão, as coisas que queremos acabam aparecendo na nossa frente.

04 - a importancia do irrelevante - GURPS - 4th Edition - Basic Set p.161Entretanto, enquanto damos bola para um número finito de elementos, o resto, um número infinito de outros elementos, sempre são descartados. Provavelmente isso acontece para tornar nossa vida possível. E é justamente essa a pergunta-chave aqui: por que colocar ou excluir fatos, pessoas ou coisas irrelevantes da nossa história?

Quando se tem mais tempo para contar uma história, geralmente é possível dar espaço para elementos contingentes. Em curtas-metragens ou contos, talvez não. A não ser que a inserção de detalhes à primeira vista desnecessários venha a contribuir mais tarde com algum componente da história. O caso da literatura naturalista é um bom exemplo (nem sempre o mais divertido) do uso estrutural de detalhes do cenário, por exemplo.

Usando a descrição muito simples feita no primeiro parágrafo, um estranho no caminho para casa poderia desencadear em personagens mulheres, velhos ou crianças uma desconfiança que eventualmente escalaria para um medo mortal. Alguém parado ao lado de um poste pode não ser absolutamente ninguém importante para os acontecimentos de uma história (e não é tão raro acontecer na vida real), mas sem dúvida poderia ser usado para criar o clima necessário para induzir certa paranoia. Ou o contrário, colocar diversos elementos alegres e confortáveis pode fazer a personagem relaxar e baixar a guarda.

04 - A importancia do irrelevante - Lobisomem - Livro dos Augurios p.23O nosso costume por histórias coerentes e bem encadeadas pode ser usado para gerar desconforto e distração quando subvertemos ele. Os livros de histórias policiais e mistério cedo ou tarde acabam brincando com a atenção de quem lê, ora colocando uma pista falsa, ora mexendo na confiança que temos em certo personagem, entre outras coisas.

Uma grande quantidade elementos aparentemente desconexos pode criar o ambiente certo para a confusão, empurrando a personagem para uma ação impensada ou à prostração. Assim como pode dar espaço para uma encruzilhada na aventura: neste ponto o narrador deixou em aberto o que pode acontecer e por isso descreve e oferece diversas oportunidades desconexas. Como num jogo de xadrez, cada um consegue ver um certo número de jogada a frente. Quando há mais que dois jogadores, as possibilidades se multiplicam, fazendo com que os jogadores tenham mais participação na história que está sendo narrada (afinal, ela era para ser narrada em conjunto, não?).

Na literatura, o uso de elementos contingentes é um pouco mais tolerado. Já no cinema, ele costuma ser mais restrito. Em jogos de RPG, tudo também acaba tendo uma função bem pensada. Em videogames narrativos é comum perdermos um pouco mais de tempo se esgueirando por calabouços labirínticos, visitando mil vezes o comerciante, vagando pelo mapa esperando que algo aconteça.

04 - a importancia do irrelevante - Vampire - The Anarch Cookbook p.26Obviamente, se a gente quer contar uma história, a gente costuma ter pelo menos um começo e um fim. Encher a narrativa de fatos irrelevantes pode, na maior parte das vezes, acabar com a paciência de quem está “ouvindo”. Numa história interativa como RPG, o constante feedback dos jogadores é super importante para avaliar o quão bem a coisa tá andando.

Por fim, o uso de “irrelevâncias” não deveria ser descartado, mas cauteloso. O importante é estar atento ao efeito que essas coisas causam. Este texto chama atenção para elas porque costumam funcionar de maneira muito mais sutil e duradoura. Você pode criar confusão através de uma charada em língua desconhecida, medo colocando em cena um lobisomem horrendo ou desespero através da perda da pessoa ou objeto mais valioso do jogo. Esses são acontecimentos que causam efeitos diretos. Mas também dá para despertar emoções semelhantes através de descrições das contingências do mundo, afetando sem causa aparente a sanidade ou o equilíbrio da personagem. Nunca dá para saber qual jeito é o melhor, mas quando vemos o jogador cuidar mais da personagem ou entregar-se a ela, aí sim sabemos que estamos num caminho interessante.

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Carta Aberta das Mulheres RPGistas : Mulheres e o Machismo no RPG

Texto publicado no blog Livro dos Espelhos em 06/02/2015

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Rolando dados: qual a dificuldade?

A primeira coisa que uma pessoa que aprende a jogar RPG quer saber é como montar um personagem. Inevitavelmente, com aquele monte de bolinhas, números, porcentagens, inter-relações entre atributos, perícias e bônus, alguém também acaba se perguntando ‘como é que eu faço para realizar alguma ação?’. E a pergunta que vem a seguir logicamente seria ‘qual a chance da personagem realizar o que quero que ela faça?’.

Correndo o risco de mudar de assunto, eu diria que importa muito pouco quantos ou qual dado vai ser rolado para realizar uma certa tarefa e mesmo qual a chance de que isso ocorra com sucesso. Comumente, nas histórias que narro, poucas vezes peço para que se rolem dados. Quando proponho uma aventura (não importa o sistema, mas meu preferido é Storyteller), o que tenho em mente são duas coisas: o que é preciso fazer para que saia uma boa história e para que seja divertido? Raramente rolar dados responde bem a essas perguntas. Pelo contrário, costuma atravancar o andamento da história e tomar um bom tempo.

Porém, existem alguns (poucos) momentos em que a aleatoriedade de uma jogada cria uma excelente expectativa sobre o resultado de uma cena e essa tensão excita de tal forma os jogadores que eles entram ainda mais em suas personagens. Tenho visto que entrar na personagem é um dos principais fatores para criar diversão ao mesmo tempo que colabora com a história.

03 - vampiro, a mascara - carnicais vicio fatal - upbyphobos - p11Feitas estas observações, voltemos então à avaliação desses raros momentos de rolagem de dados. Este texto surgiu de uma discussão bem simples, mas que requeria uma comprovação matemática. Qual a diferença entre rolar um dado (como em D&D), rolar três dados (como em GURPS) ou rolar um número de dados de acordo com o nível de habilidade (como em Storyteller)?

No primeiro caso, um dado produz um sucesso contra uma dificuldade. Acima ou abaixo do valor de dificuldade, o sucesso está garantido. Ou seja, quanto mais nível de habilidade a personagem possui, mais fácil será para ela realizar o que deseja. Há dois detalhes aqui: uma falha automática está garantida caso a dificuldade exceder o nível de habilidade, e a progressão (taxa) da chance de sucesso é linear.

Do site anydice.com a gente pode pegar umas informações sobre essas estatísticas simples. Para qualquer dado, sendo rolado apenas um dado, a chance de sair qualquer número é a mesma. Num d20, por exemplo, essa chance é de 5%, como mostra a tabela abaixo (1d20 significa um dado de vinte faces, 2d6 significa dois dados de seis faces).

Falha critica - Rolando Dados - 1d20Gráfico 1: Probabilidade de sair um número individualmente em 1d20

Assim, se formos rolar apenas um dado contra uma dificuldade, à medida que aumentamos nossa habilidade, linearmente aumentam nossas chances de sucesso. Ou seja, se minha personagem é foda, nada pode pará-la!

Falha critica - Rolando Dados - 1d20 cumulativoGráfico 2: Probabilidade acumulada de obter um sucesso em 1d20

No segundo caso, jogando 3d6 em GURPS, o objetivo é o mesmo: para um nível de habilidade é preciso que a soma dos três dados dê abaixo da dificuldade. Como são três dados somados, há mais chance da rolagem resultar somas em torno do valor médio de cada dado (soma de trincas com os números 3 e 4). É o mesmo que quando se rola dois dados e a gente sabe que a soma que mais dá é 7. Com 3d6, o que mais dá é 10 e 11, que é considerado por aquele sistema como o nível de habilidade de um humano médio.

Falha critica - Rolando Dados - 3d6Gráfico 3: Probabilidade de obter cada soma individualmente em 3d6

Cumulativamente, porém, o comportamento das chances de sucesso é um pouco mais complicado que o caso linear. Aqui, a distribuição estatística é do tipo normal, ou seja, é tão difícil cair somas muito baixas como muito altas. Tirar uma falha crítica (soma igual a 18) é tão difícil quanto tirar um acerto crítico (soma igual a 3), mas muito mais difícil porém que tirar uma soma média. (Em GURPS, se não em engano, a soma 17 também é falha crítica! O que combina com a segunda lei da termodinâmica que diz que a bagunça caótica é muito mais fácil de acontecer que a organização premeditada).

Falha critica - Rolando Dados - 3d6 cumulativoGráfico 4: Probabilidade acumulada de obter uma soma (sucesso) em 3d6

Se a gente for comparar esses dois tipos de rolagem, dá para perceber que o segundo caso leva em consideração que coisas mais difíceis são realmente mais difíceis de realizar mesmo que a personagem possua o conhecimento ou habilidade necessária para realizá-las. O sistema de rolagem de apenas um dado garante, diferentemente, que mesmo as coisas mais impossíveis sejam realizadas com a mesma chance que as coisas mais simples (desde que a personagem possua o nível necessário, claro).

Entretanto, o terceiro caso, a rolagem de múltiplos dados correspondendo ao nível de habilidade, esse já é muito mais complexo. Na nossa discussão presencial sobre rolagem, o que ficava em dúvida era o quão mais fácil seria obter sucessos rolando mais dados, se é que realmente ficava. Umas pessoas achavam intuitivamente que as chances de sucesso, independente da dificuldade, aumentavam. Outra, achava intuitivamente que diminuía. Eis porque este texto foi escrito: como a estatística é matemática, não adianta nada ficar supondo que as chances são ligeiramente melhores, ou sentindo que com mais nível fica mais difícil (!). Discussão matemática é mais produtiva através de contas. E sem as contas não dá para chegar a nenhuma conclusão, hum.., matemática. Vamos a elas então!

Vampiro - A Mascara 3a - Companheiro do Narrador - combateA fórmula básica de probabilidade é a que faz a razão entre o número de eventos (faces que representam sucessos) – n(E) e o espaço amostral (total de faces do dado) – n(A). Em um d10, por exemplo, é muito simples: ao rolar um dado, temos um evento em 10, ou seja, cada evento tem 10% de chance de ocorrer. Quando jogamos dois dados, multiplicamos a probabilidade de sucesso de um dado pela do outro. Em dados igual e com a mesma dificuldade para ambos, a conta fica que a probabilidade (chance) total de obtermos sucesso em todos os dados (Ps de d) é igual à chance de sucesso de um dado ( n(E)/n(A) ) elevado ao número de dados iguais rolados (d).

03 - Rolando dados - formula tudo sucesso 2Assim, construímos a tabela das chances de obtenção de sucesso em todos os dados rolados. A primeira linha é a quantidade de dados rolados. A primeira coluna é a dificuldade num d10, indo de 2 a 10, já que 1 é sempre erro crítico. Zero por cento significa uma chance incrivelmente pequena, mas nunca zero mesmo. Assim como 100% não significa certeza de sucesso, mas quase.

falha critica - rolando dados - tab. tudo sucessoTabela 1: Probabilidade de obter sucesso em todos os dados (d10) rolados

A coluna de rolagem de um dado é a soma simples de cada probabilidade igual individual, como no caso do D&D. A partir da segunda coluna, as chances vão diminuindo, afinal obter sucesso em todos os dados aumenta à medida que aumenta o número de dados rolados. Para conseguir 2 sucessos rolando 2 dados com dificuldade 6, temos 25% de chance de acerto. A probabilidade já cai bastante quando se tenta obter 4 sucessos em 4 dados com a mesma dificuldade (6%).

Mas caso se queria apenas um sucesso em vários dados rolados, então a tabela é a seguinte:

falha critica - rolando dados - tab. um unico sucessoTabela 2: Probabilidade de obter um único sucesso rolando vários dados

Como era de se esperar, conseguir apenas um sucesso em vários dados jogados é muito mais fácil que em apenas um.

O que podemos perceber é que o aumento de probabilidade de sucesso (taxa) não cresce linearmente com o aumento do nível de habilidade (número de dados rolados). Parecido com o sistema de 3d6 do GURPS, à medida que a personagem tem habilidade para fazer uma coisa mais difícil, as chances dela aumentam, mas não tanto para que faça com que ela acabe conseguindo com a mesma simplicidade que ao realizar uma tarefa fácil. Independente da habilidade, uma coisa difícil vai continuar sempre sendo difícil.

A conta muda um pouco quando queremos saber como variam as chances de sucesso com vários dados, mas dessa vez fixando o número de acertos em três, por exemplo, que é o que se precisa para realizar bem e completamente uma tarefa em Storyteller. Qual será a real probabilidade de realizá-la para cada nível de habilidade (número de dados rolados)?

03 - Falha critica - Rolando dados - Cyberpunk2020 - p45Fixar um número esperado de sucessos significa computar também a chance de falha para o resto dos dados rolados. É preciso então saber qual a chance de obter somente 3 sucessos (Pss de 3) e as chances de obter falha obrigatória nos outros dados (Pf). O jeito que esses resultados podem aparecer é dado pela análise combinatória de eventos repetidos e desordenados, sendo d o número de dados rolados e m o número de dados com sucesso:

03 - Rolando dados - formula analise combinatoriaAssim, teremos que a probabilidade total de conseguirmos somente m sucessos em d dados (Pss de m em d) é igual à chance de obtermos somente sucesso em m dados, multiplicado pela chance de obter falha no resto dos dados rolados (d – m), multiplicado pelo número de combinações possíveis desses resultados (C).

03 - Rolando dados - formula somente m sucessos 2Com estes resultados, montamos a Tabela 3:

falha critica - rolando dados - tab. apenas 3 sucessosTabela 3: Probabilidade de obter apenas 3 sucessos em vários dados

Observando a tabela, a primeira coisa que salta aos olhos é que as chances de sucesso diminuem à medida que aumenta o número de dados, algo que parece incoerente. Isso acontece pois ao fixarmos a condição de sucesso em 3 dados bem-sucedidos não estamos levando em conta que podemos ter 3 sucessos ou mais. O que esta tabela mostra é as chances de obter apenas 3 sucessos em d dados. Como a chance de obter mais sucessos com mais dados aumenta, é claro que se mantivermos fixa a condição de apenas 3 sucessos as chances vão diminuir.

O pulo do gato é então computarmos as chances de se obter 3 ou mais sucessos. E isso é feito somando-se à probabilidade de obter apenas 3 sucessos, as chances de obter sucesso nos demais dados também. Por exemplo: rolando 5 dados, as chances de obter 3 sucessos (Ps de 3 em 5) é igual à chance de obter somente 3 sucessos (Pss de 3) mais a chance de obter somente 4 sucessos (Pss de 4) mais a chance de obter somente 5 sucessos (Pss de 5). A fórmula vira um somatório e fica com a seguinte cara:

03 - Rolando dados - formula somente m sucessos em d dadosE então, quando menos se esperava, surge a Tabela 4:

falha critica - rolando dados - tab. 3 ou mais sucessosTabela 4: Probabilidade de obter 3 ou mais sucessos rolando vários dados

Assim, ao rolar mais dados temos mais chance de obter sucessos. Como no caso de rolar 3d6, para dificuldades maiores a taxa de aumento da probabilidade é menor que para dificuldades baixas, afinal, ao tentar realizar uma tarefa difícil, ter habilidade para realizá-la não a deixa mais fácil. Difícil é sempre difícil e isso só é conseguido em nível de sistema de rolagem quando se usa mais de um dado nos testes.

Lembra que falei de um detalhe de se rolar apenas um dado? De que uma ação sempre falha quando não conseguimos obter um sucesso? Parece óbvio, mas aqui também tem coisa. Quando se rola apenas um dado contra um nível de dificuldade (como em D&D) ou três dados comparando a soma deles contra uma dificuldade (como em GURPS) o que obtemos é um resultado binário: ou falha ou sucesso. Esses dois sistemas têm apenas duas formas de deixar a coisa menos óbvia, que é inserindo a regra do acerto e da falha crítica. É sempre possível, nos dois extremos daquele resultado binário (falha/sucesso), ter a nuance de acertar bem demais ou errar catastroficamente. Pelo menos isso!

03 - Falha critica - rolando dados - Cyberpunk2020 - p87Num sistema como Storyteller, os resultados de ações não são nunca ou tudo ou nada. Uma tarefa pode ser, além de uma falha ou um acerto, porcamente ou muito bem realizada. A quantidade de sucessos obtidos responde à pergunta ‘o quão bem a personagem conseguiu fazer o que queria?’. Mesmo realizando mal uma tarefa, ainda sim foi possível realizá-la. Em termos de história, isso pode ser traduzido em uma gambiarra ou em um sucesso temporário (‘aquele barbante que você usou para amarrar a ponte vai arrebentar a qualquer momento! Mas até lá, alguns de nós conseguirão cruzar o rio.’). E não é só rolando mais dados que se obtém essa gradação de sucesso. O sistema de Unknown Armies funciona da seguinte forma. Usa-se 2d10 para obter uma porcentagem. Assim como em GURPS ou D&D, esse único valor é comparado com a dificuldade de realizar uma tarefa. Porém, quanto mais próximo o resultado obtido estiver do nível de dificuldade, mais perfeito é o sucesso. Eis um jeito muito simples e que não necessita trocentos cálculos e tabelas para fazer com que sutilezas matemáticas ajudem na composição da história.

A conclusão a que chego, então, é que um sistema de rolagem que faz crescer o número de dados com o nível da habilidade é bem mais interessante no tocante a níveis de sucesso do que um sistema que rola apenas um dado. Agora, com respeito à verossimilhança ou ao realismo desse sistema, isso sim é uma questão de intuição e podemos discutir sem medo de cometer uma incoerência matemática. Assim como podemos discutir se esse sistema atende ou não às nossas expectativas do que é um jogo de RPG.

A minha concepção de RPG está resumida naquelas duas perguntas lá do começo: o que é preciso fazer para que saia uma boa história e para que seja divertido? Penso que se elas não forem prioridade, nenhum sistema de RPG vai funcionar direito ou qualquer sistema poderá ser falho numa mesa de jogo.

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Fazendo drama: como levar bem uma história interativa

Dentro de uma história interativa (do tipo roleplaying game RPG), é possível identificar três tipos de estruturas dramáticas:

1) a felicidade: esse é o anti-drama por excelência. Sendo a resolução de um conflito, a felicidade numa narrativa é a identificação, o relaxamento, a certeza, o prêmio.

a) o problema: fonte de angústia ou medo, as dificuldades costumam ser a ignição do drama. É o momento de preparação ou apresentação (crescendo) do centro da história. Numa visão clássica, uma história é composta de apenas um problema (tragédia, comédia, etc.), coincidindo assim esta estrutura com o centro cronológico da narrativa. Porém, é possível criar histórias do tipo “bola de neve”, onde os problemas se adicionam, ou do tipo “labirinto”, quando um problema (resolvido) leva a outro mas sem tornar as coisas muito piores. Este ponto também é o lugar de exposição (estresse) e aparecimento/crescimento dos personagens, revelando comportamentos e aparando algumas arestas do seu momento de criação.

α) a ação: dado um conjunto de elementos suficientes, os personagens passam a agir, dando vida e movimento próprio à história. Isso não significa que eles têm o controle da situação, mas sim que passam a ter a necessidade de transitar pelo cenário para transformar a sua situação. Aqui, é possível fechar o ciclo, dando aspecto de continuidade à história: mudando a situação, cai-se ou em novos problemas (urgência) ou em relaxamento (tédio), gerando novos momentos de ação.

Vampire The Masquerade - A World Of Darkness - 01

E ainda, várias tramas podem estar acontecendo ao mesmo tempo, correspondendo a temporalidades, exigências e tensões diferentes. Personagens diferentes também podem estar em sub-tramas distintas, experimentando, cada um, ação, felicidade e drama separados.

É comum ver uma história começar no ponto (1). Note que, por questão de costume, acabamos confundindo as estruturas expostas aqui com uma sequência temporal. Entretanto, não raras vezes subverte-se esse vício cronológico iniciando-se nos pontos (a) ou (α). Nesses casos, é surpreendentemente comum passar pelos outros pontos numa tentativa de dar sentido aos fatos (o que não é necessário, pois estou falando aqui de estrutura: pode haver cinco ações seguidas ou um encadeamento de felicidade, ação, felicidade, problema, ação, etc.).

Quando estamos numa narrativa de RPG, é crucial atingir seguidamente o ponto (α) para que o conjunto de jogadores possa participar e divertir-se, deixando a história mover-se por conta própria.

Então, o tal “conjunto de elementos suficientes” requeridos por (α) poderia ser o seguinte:

– motivações pessoais para curto e médio prazo;

– antecedentes pessoais e ligações com o mundo (atentar àquelas relações em que o personagem tem poder igual ou inferior, ou, quando o contrário, àquelas que demandam cuidado por parte dele);

– problema ou coleção de problemas, normalmente com possibilidade de solução/prêmio (o que supostamente estimula quem joga). A falta de solução, porém, não acarreta em dificuldade para a narrativa, pois acaba configurando novos cenários e dramas, geralmente devido aos personagens (por alguma razão mística) se enfiarem seguidamente em problemas. (Aqui os problemas aparecem como subestrutura.);

– tédio. Mesmo que a preguiça domine o comportamento dos seres vivos, é possível que, ainda que raramente, o tédio motive transformações. Neste caso, noto dois grandes grupos de eventos: as aventuras por escolha (mais clichê, mas não necessariamente ruim) e as decisões surpreendentes (uso de energia/meios para realizar vontades esdrúxulas ou bizarras). A felicidade, enquanto estabilidade, dá condições tanto para realização das motivações pessoais quanto para criação de novos projetos. (Aqui ela também aparece como subestrutura.)

Vampire The Masquerade - A World Of Darkness - 02

Vou colocar o foco agora na questão dos problemas. Por um lado podem ser motivadores (“tenho que resolver esse desafio, salvar minha vida!”), mas por outro, se sufocarem os personagens, vão travando o andamento do jogo (“não consigo, não sei o que fazer…”). Isso não é questão de poder ou não encontrar uma solução, mas sim de deixar sempre abertas algumas vias de ação, mesmo que levem-nos a lugares errados ou becos sem saída. RPG é um fluxo narrativo cibernético: a todo momento é alimentado com dados de entrada (externos/narrador) e retroalimentado com as ações dos personagens (internas), modificando continuamente a direção do movimento da história.

O que cria esse movimento, em geral, é o drama. Como disse no início, os problemas são a ignição, o começo da combustão, mas enquanto momento estrutural (não sequencial), é o drama que faz o Jogo acontecer. Assim, os problemas devem sempre retornar à ação e nunca manterem-se como foco da história.

Para tanto, temos que prestar atenção ao “conjunto de elementos suficientes”. Em geral, são as condições materiais (antecedentes + eventos ocorridos) e sociais (ligações interpessoais) que dão poder de ação aos personagens. Os antecedente são a base que suporta um personagem, suas ferramentas e meios (que podem ser úteis ou não numa determinada história ou acontecimento). Os eventos ocorridos podem abrir portas, representadas pelos problemas para personagens-não-jogadores ou antagonistas, ou fechá-las aumentando as dificuldades, ou mesmo deixando cada vez menos caminhos para se optar (o que, de certa forma, facilita a escolha do personagem). As motivações pessoais respondem a perguntas como “por onde” e “como” o personagem vai querer andar. Esta é uma forma dele impor-se na história. Quem narra deve estar atento a isso, respeitando essas escolhas (dando espaço para elas realizarem-se) e lembrando que para além de tal drama específico, o personagem teria outras coisas para fazer. Por fim, o círculo de relações é o fluido que azeita a engrenagem material, dinamizando ou colocando mais atrito entre o que o personagem pode e o que não pode fazer, modificando seus antecedentes e motivações e levando-o a novos eventos.

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Enfim, tentei mostrar alguns pontos-chave para levar bem uma história de RPG. Pensar em estrutura, dando fôlego ou falsa calmaria, aumentando o estresse, e sempre abrindo vias de ação. Colocar o foco na ação, trabalhando com determinados elementos que compõe tanto o cenário privado quanto público do personagem. Lembrar que se não houver retroalimentação da história, se ela anda demais como o narrador quer, com respostas óbvias dos personagens, então algo está errado. Mais cedo ou mais tarde a história deixará de andar.

(imagens do livro “A world of Darkness”, 1992)

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Avaliação de dano: comparação entre sistemas de vitalidade

Considero a simplicidade um dos fatores mais importantes na qualidade de um sistema de RPG. Isso funciona com teorias científicas, estilos de vida, e às vezes com música e literatura. É como se a termodinâmica valesse realmente para qualquer atividade onde se dispende energia (quando não se dispende?): qualquer sistema tende a um estado de mais baixa energia. É por isso que as coisas caem, a velocidade desacelera e o calor esfria.

Mas num sistema de RPG, como em outras criações ou estados organizados da vida, há um limite para o quão “menos” ele precisa ser. Em outras palavras, quando o modelo está muito despojado, ele dá conta de poucos fenômenos e acabamos ficando insatisfeitos. Certa vez resolvi criar um sistema de RPG extremamente simples: todas as regras cabiam numa página! Era simplesmente deplorável.

Obviamente, os modelos podem pecar em quase qualquer aspecto, pois, afinal, são representações do mundo real e não o mundo em si. Dá para perceber, mais ou menos, que cada RPG coloca o foco num âmbito do jogo: no drama (Vampiro), no realismo (GURPS), na fantasia medieval (AD&D), etc. Neste caso, vou analisar o sistema de dano e vitalidade de alguns jogos.

A minha especialidade é Storyteller e sempre achei muito interessante e prática toda a sua mecânica de jogo. Porém, na segunda edição de Vampiro (como em Lobisomem, Mago, etc.) faltava a diferenciação de dano letal e dano por contusão, coisa que GURPS e até mesmo Shadowrun já haviam feito há muito tempo. (Como dano agravado só tem em Storyteller não vai entrar na comparação.) Se não me engano, pois joguei pouco e há muito tempo, o AD&D 2ed. também tinha apenas um tipo de dano (e dando uma olhada rápida no D&D 4ed., isso continua assim).

Diferentes armas ou golpes parecem causar diferentes tipos de dano. GURPS faz duas diferenciações: uma referente ao tipo de uso da arma (golpe de ponta ou de balanço) e o tipo de dano que causa (perfurante ou contusão). Foi uma sacada muito legal e que parece muito bem dar conta de qualquer situação de combate. E mesmo para outros “danos”, como fadiga, este sistema já havia previsto regras lá no final da década de 80.

Apesar disso, a pretensão de realismo de GURPS às vezes incomoda, fazendo a gente ignorar metade do livro básico. Acaba sendo muito cansativo e dando brecha para os jogadores “advogados de regras” atravancarem a história. (Tinha um RPG brasileiro que, com menos páginas de regras, parecia querer ganhar o prêmio de maior complexidade: Demos Corporation. Infelizmente esse jogo está tão enterrado que não se encontra a menor informação sobre ele. Sei o que pouco lembro, e só.)

Quando a gente não copia alguma coisa de outro sistema, acaba inventando mesmo. Assim, antes de lançarem a 3ed. de Vampiro, onde acrescentaram a divisão do dano normal, eu já havia tentado complexificar o sistema pelo outro lado da moeda, os níveis de vitalidade.

O que me motivava era o seguinte raciocínio: durante combate, o personagem recebe dano em diferentes partes do corpo, não apenas num tronco que é o resumo do corpo. Se eu tranco o dedo numa porta ou perco a mão, evidentemente tenho modificadores de ação mas não os mesmos para correr e para digitar ou usar uma chave de fenda. E analisando ao longo do tempo, os modificadores que nasciam da dor deveriam ser amenizados (quando a mão amputada cicatriza, não tem mais porque interferir num salto ou num discurso).

Quando pensei nisso, inventei uma nova tabela de vitalidade para Storyteller que continha, então, cada parte do corpo e seus devidos redutores, contendo membros, cabeça e tronco. Isso acabava com o problema da amputação. Alguém que perdesse um braço não ficaria com tanto dano como se tivesse caído de um prédio (como é o caso quando se tem apenas 7 níveis de vitalidade). Isso é mais relevante no caso de um vampiro, que possui uma vida sobrenatural e quase independente de órgãos. Se fosse um mortal, perder um braço comprometeria muito o funcionamento do corpo como um todo.

GURPS tem uma solução interessante para amputação. Cada parte do corpo tem um “nível de vitalidade” proporcional ao nível de HT (vigor) do personagem. Se um golpe visa um membro, então basta conseguir a quantidade de dano correspondente àquela proporção. E como o sistema é feito inicialmente para humanos (e corpos com funcionamento parecido), então o dano cumulativo continua fazendo sentido.

Na minha cabeça, o sistema de Shadowrun resolvia a outra questão, aquela relativa aos modificadores por dor. Lendo agora, vi o seguinte: no “monitor de condição” temos a tabela de “atordoamento” e de “físico”, para dois tipos de dano. A primeira está relacionada com “exaustão, fadiga muscular e aflições semelhantes, sendo [o dano] provocado por socos e pontapés, armas de choque, granadas de concussão, fadiga por lançamento e efeitos de feitiços” (1ed., 1995). A segunda tabela dizia respeito a danos causados por “armas, explosões, lâminas e pela maioria dos feitiços”.

 

Parece que é quase isso mesmo (apesar da descrição misturar soco com cansaço). O “atordoamento” causa redutores de ação e iniciativa, e são recuperados mais rápido. Todo dano desse tipo que exceda os quadradinhos da tabela passam a ser computados como “físico”. Em GURPS, fadiga impõe redutores, mas nunca se converte em dano, e leva ao desmaio. Se não me engano, D&D não possui nenhum tipo de redutor: o personagem continua capacitado pra briga mesmo com apenas um ponto de vida.

Aquela tabela com “vitalidade” que inventei quase não foi usada. No final das contas fazia pouca diferença em termos de jogo. A primeira edição de Mundo das Trevas (2009), mantém um sistema parecido com o antigo de Vampiro, mas acrescenta que cada corpo possui uma quantidade de “vida” específica (como em vários outros sistemas) e piora a aplicação dos redutores.

Mesmo tendo passado vários anos depois dessa experiência de alteração do sistema de vitalidade de Storyteller, ainda acho que vale a pena tentar colocar a dor em cena, não exatamente como um número a diminuir os dados a serem rolados, mas como elemento de drama. No caso dos mortais isso parece mais evidente. Já com vampiros, talvez algum tipo de atordoamento seja interessante, combinando gastos de Força de Vontade com danos. Acho que Magos, Vampiros, Lobisomens, etc. já possuem boas restrições aos usos de seus poderes, mas os estados mentais que tais usos acarretam poderiam ser computados de alguma forma para serem lembrados e interpretados.

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Do que se trata este blog?

Há muito eu e um colega temos debatido calorosamente sobre RPG. Os temas passam por literatura, montagem de personagens, construção de ambiente, antagonistas, diversão, temporalidade, ontologia, comparações dos universos com a História “real”, lógica, encadeamento sequencial, necessidade do uso de dados, drama, pancadaria, etc.

As questões que apareceram destes temas pertencem tanto ao campo dos jogadores quanto dos narradores e, muitas vezes, foram problemas que nos deparamos ao longo de nossas seções de jogo.

Resolvemos tentar organizar isso em forma de texto e fundar este blog.

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