Rolando dados: qual a dificuldade?

A primeira coisa que uma pessoa que aprende a jogar RPG quer saber é como montar um personagem. Inevitavelmente, com aquele monte de bolinhas, números, porcentagens, inter-relações entre atributos, perícias e bônus, alguém também acaba se perguntando ‘como é que eu faço para realizar alguma ação?’. E a pergunta que vem a seguir logicamente seria ‘qual a chance da personagem realizar o que quero que ela faça?’.

Correndo o risco de mudar de assunto, eu diria que importa muito pouco quantos ou qual dado vai ser rolado para realizar uma certa tarefa e mesmo qual a chance de que isso ocorra com sucesso. Comumente, nas histórias que narro, poucas vezes peço para que se rolem dados. Quando proponho uma aventura (não importa o sistema, mas meu preferido é Storyteller), o que tenho em mente são duas coisas: o que é preciso fazer para que saia uma boa história e para que seja divertido? Raramente rolar dados responde bem a essas perguntas. Pelo contrário, costuma atravancar o andamento da história e tomar um bom tempo.

Porém, existem alguns (poucos) momentos em que a aleatoriedade de uma jogada cria uma excelente expectativa sobre o resultado de uma cena e essa tensão excita de tal forma os jogadores que eles entram ainda mais em suas personagens. Tenho visto que entrar na personagem é um dos principais fatores para criar diversão ao mesmo tempo que colabora com a história.

03 - vampiro, a mascara - carnicais vicio fatal - upbyphobos - p11Feitas estas observações, voltemos então à avaliação desses raros momentos de rolagem de dados. Este texto surgiu de uma discussão bem simples, mas que requeria uma comprovação matemática. Qual a diferença entre rolar um dado (como em D&D), rolar três dados (como em GURPS) ou rolar um número de dados de acordo com o nível de habilidade (como em Storyteller)?

No primeiro caso, um dado produz um sucesso contra uma dificuldade. Acima ou abaixo do valor de dificuldade, o sucesso está garantido. Ou seja, quanto mais nível de habilidade a personagem possui, mais fácil será para ela realizar o que deseja. Há dois detalhes aqui: uma falha automática está garantida caso a dificuldade exceder o nível de habilidade, e a progressão (taxa) da chance de sucesso é linear.

Do site anydice.com a gente pode pegar umas informações sobre essas estatísticas simples. Para qualquer dado, sendo rolado apenas um dado, a chance de sair qualquer número é a mesma. Num d20, por exemplo, essa chance é de 5%, como mostra a tabela abaixo (1d20 significa um dado de vinte faces, 2d6 significa dois dados de seis faces).

Falha critica - Rolando Dados - 1d20Gráfico 1: Probabilidade de sair um número individualmente em 1d20

Assim, se formos rolar apenas um dado contra uma dificuldade, à medida que aumentamos nossa habilidade, linearmente aumentam nossas chances de sucesso. Ou seja, se minha personagem é foda, nada pode pará-la!

Falha critica - Rolando Dados - 1d20 cumulativoGráfico 2: Probabilidade acumulada de obter um sucesso em 1d20

No segundo caso, jogando 3d6 em GURPS, o objetivo é o mesmo: para um nível de habilidade é preciso que a soma dos três dados dê abaixo da dificuldade. Como são três dados somados, há mais chance da rolagem resultar somas em torno do valor médio de cada dado (soma de trincas com os números 3 e 4). É o mesmo que quando se rola dois dados e a gente sabe que a soma que mais dá é 7. Com 3d6, o que mais dá é 10 e 11, que é considerado por aquele sistema como o nível de habilidade de um humano médio.

Falha critica - Rolando Dados - 3d6Gráfico 3: Probabilidade de obter cada soma individualmente em 3d6

Cumulativamente, porém, o comportamento das chances de sucesso é um pouco mais complicado que o caso linear. Aqui, a distribuição estatística é do tipo normal, ou seja, é tão difícil cair somas muito baixas como muito altas. Tirar uma falha crítica (soma igual a 18) é tão difícil quanto tirar um acerto crítico (soma igual a 3), mas muito mais difícil porém que tirar uma soma média. (Em GURPS, se não em engano, a soma 17 também é falha crítica! O que combina com a segunda lei da termodinâmica que diz que a bagunça caótica é muito mais fácil de acontecer que a organização premeditada).

Falha critica - Rolando Dados - 3d6 cumulativoGráfico 4: Probabilidade acumulada de obter uma soma (sucesso) em 3d6

Se a gente for comparar esses dois tipos de rolagem, dá para perceber que o segundo caso leva em consideração que coisas mais difíceis são realmente mais difíceis de realizar mesmo que a personagem possua o conhecimento ou habilidade necessária para realizá-las. O sistema de rolagem de apenas um dado garante, diferentemente, que mesmo as coisas mais impossíveis sejam realizadas com a mesma chance que as coisas mais simples (desde que a personagem possua o nível necessário, claro).

Entretanto, o terceiro caso, a rolagem de múltiplos dados correspondendo ao nível de habilidade, esse já é muito mais complexo. Na nossa discussão presencial sobre rolagem, o que ficava em dúvida era o quão mais fácil seria obter sucessos rolando mais dados, se é que realmente ficava. Umas pessoas achavam intuitivamente que as chances de sucesso, independente da dificuldade, aumentavam. Outra, achava intuitivamente que diminuía. Eis porque este texto foi escrito: como a estatística é matemática, não adianta nada ficar supondo que as chances são ligeiramente melhores, ou sentindo que com mais nível fica mais difícil (!). Discussão matemática é mais produtiva através de contas. E sem as contas não dá para chegar a nenhuma conclusão, hum.., matemática. Vamos a elas então!

Vampiro - A Mascara 3a - Companheiro do Narrador - combateA fórmula básica de probabilidade é a que faz a razão entre o número de eventos (faces que representam sucessos) – n(E) e o espaço amostral (total de faces do dado) – n(A). Em um d10, por exemplo, é muito simples: ao rolar um dado, temos um evento em 10, ou seja, cada evento tem 10% de chance de ocorrer. Quando jogamos dois dados, multiplicamos a probabilidade de sucesso de um dado pela do outro. Em dados igual e com a mesma dificuldade para ambos, a conta fica que a probabilidade (chance) total de obtermos sucesso em todos os dados (Ps de d) é igual à chance de sucesso de um dado ( n(E)/n(A) ) elevado ao número de dados iguais rolados (d).

03 - Rolando dados - formula tudo sucesso 2Assim, construímos a tabela das chances de obtenção de sucesso em todos os dados rolados. A primeira linha é a quantidade de dados rolados. A primeira coluna é a dificuldade num d10, indo de 2 a 10, já que 1 é sempre erro crítico. Zero por cento significa uma chance incrivelmente pequena, mas nunca zero mesmo. Assim como 100% não significa certeza de sucesso, mas quase.

falha critica - rolando dados - tab. tudo sucessoTabela 1: Probabilidade de obter sucesso em todos os dados (d10) rolados

A coluna de rolagem de um dado é a soma simples de cada probabilidade igual individual, como no caso do D&D. A partir da segunda coluna, as chances vão diminuindo, afinal obter sucesso em todos os dados aumenta à medida que aumenta o número de dados rolados. Para conseguir 2 sucessos rolando 2 dados com dificuldade 6, temos 25% de chance de acerto. A probabilidade já cai bastante quando se tenta obter 4 sucessos em 4 dados com a mesma dificuldade (6%).

Mas caso se queria apenas um sucesso em vários dados rolados, então a tabela é a seguinte:

falha critica - rolando dados - tab. um unico sucessoTabela 2: Probabilidade de obter um único sucesso rolando vários dados

Como era de se esperar, conseguir apenas um sucesso em vários dados jogados é muito mais fácil que em apenas um.

O que podemos perceber é que o aumento de probabilidade de sucesso (taxa) não cresce linearmente com o aumento do nível de habilidade (número de dados rolados). Parecido com o sistema de 3d6 do GURPS, à medida que a personagem tem habilidade para fazer uma coisa mais difícil, as chances dela aumentam, mas não tanto para que faça com que ela acabe conseguindo com a mesma simplicidade que ao realizar uma tarefa fácil. Independente da habilidade, uma coisa difícil vai continuar sempre sendo difícil.

A conta muda um pouco quando queremos saber como variam as chances de sucesso com vários dados, mas dessa vez fixando o número de acertos em três, por exemplo, que é o que se precisa para realizar bem e completamente uma tarefa em Storyteller. Qual será a real probabilidade de realizá-la para cada nível de habilidade (número de dados rolados)?

03 - Falha critica - Rolando dados - Cyberpunk2020 - p45Fixar um número esperado de sucessos significa computar também a chance de falha para o resto dos dados rolados. É preciso então saber qual a chance de obter somente 3 sucessos (Pss de 3) e as chances de obter falha obrigatória nos outros dados (Pf). O jeito que esses resultados podem aparecer é dado pela análise combinatória de eventos repetidos e desordenados, sendo d o número de dados rolados e m o número de dados com sucesso:

03 - Rolando dados - formula analise combinatoriaAssim, teremos que a probabilidade total de conseguirmos somente m sucessos em d dados (Pss de m em d) é igual à chance de obtermos somente sucesso em m dados, multiplicado pela chance de obter falha no resto dos dados rolados (d – m), multiplicado pelo número de combinações possíveis desses resultados (C).

03 - Rolando dados - formula somente m sucessos 2Com estes resultados, montamos a Tabela 3:

falha critica - rolando dados - tab. apenas 3 sucessosTabela 3: Probabilidade de obter apenas 3 sucessos em vários dados

Observando a tabela, a primeira coisa que salta aos olhos é que as chances de sucesso diminuem à medida que aumenta o número de dados, algo que parece incoerente. Isso acontece pois ao fixarmos a condição de sucesso em 3 dados bem-sucedidos não estamos levando em conta que podemos ter 3 sucessos ou mais. O que esta tabela mostra é as chances de obter apenas 3 sucessos em d dados. Como a chance de obter mais sucessos com mais dados aumenta, é claro que se mantivermos fixa a condição de apenas 3 sucessos as chances vão diminuir.

O pulo do gato é então computarmos as chances de se obter 3 ou mais sucessos. E isso é feito somando-se à probabilidade de obter apenas 3 sucessos, as chances de obter sucesso nos demais dados também. Por exemplo: rolando 5 dados, as chances de obter 3 sucessos (Ps de 3 em 5) é igual à chance de obter somente 3 sucessos (Pss de 3) mais a chance de obter somente 4 sucessos (Pss de 4) mais a chance de obter somente 5 sucessos (Pss de 5). A fórmula vira um somatório e fica com a seguinte cara:

03 - Rolando dados - formula somente m sucessos em d dadosE então, quando menos se esperava, surge a Tabela 4:

falha critica - rolando dados - tab. 3 ou mais sucessosTabela 4: Probabilidade de obter 3 ou mais sucessos rolando vários dados

Assim, ao rolar mais dados temos mais chance de obter sucessos. Como no caso de rolar 3d6, para dificuldades maiores a taxa de aumento da probabilidade é menor que para dificuldades baixas, afinal, ao tentar realizar uma tarefa difícil, ter habilidade para realizá-la não a deixa mais fácil. Difícil é sempre difícil e isso só é conseguido em nível de sistema de rolagem quando se usa mais de um dado nos testes.

Lembra que falei de um detalhe de se rolar apenas um dado? De que uma ação sempre falha quando não conseguimos obter um sucesso? Parece óbvio, mas aqui também tem coisa. Quando se rola apenas um dado contra um nível de dificuldade (como em D&D) ou três dados comparando a soma deles contra uma dificuldade (como em GURPS) o que obtemos é um resultado binário: ou falha ou sucesso. Esses dois sistemas têm apenas duas formas de deixar a coisa menos óbvia, que é inserindo a regra do acerto e da falha crítica. É sempre possível, nos dois extremos daquele resultado binário (falha/sucesso), ter a nuance de acertar bem demais ou errar catastroficamente. Pelo menos isso!

03 - Falha critica - rolando dados - Cyberpunk2020 - p87Num sistema como Storyteller, os resultados de ações não são nunca ou tudo ou nada. Uma tarefa pode ser, além de uma falha ou um acerto, porcamente ou muito bem realizada. A quantidade de sucessos obtidos responde à pergunta ‘o quão bem a personagem conseguiu fazer o que queria?’. Mesmo realizando mal uma tarefa, ainda sim foi possível realizá-la. Em termos de história, isso pode ser traduzido em uma gambiarra ou em um sucesso temporário (‘aquele barbante que você usou para amarrar a ponte vai arrebentar a qualquer momento! Mas até lá, alguns de nós conseguirão cruzar o rio.’). E não é só rolando mais dados que se obtém essa gradação de sucesso. O sistema de Unknown Armies funciona da seguinte forma. Usa-se 2d10 para obter uma porcentagem. Assim como em GURPS ou D&D, esse único valor é comparado com a dificuldade de realizar uma tarefa. Porém, quanto mais próximo o resultado obtido estiver do nível de dificuldade, mais perfeito é o sucesso. Eis um jeito muito simples e que não necessita trocentos cálculos e tabelas para fazer com que sutilezas matemáticas ajudem na composição da história.

A conclusão a que chego, então, é que um sistema de rolagem que faz crescer o número de dados com o nível da habilidade é bem mais interessante no tocante a níveis de sucesso do que um sistema que rola apenas um dado. Agora, com respeito à verossimilhança ou ao realismo desse sistema, isso sim é uma questão de intuição e podemos discutir sem medo de cometer uma incoerência matemática. Assim como podemos discutir se esse sistema atende ou não às nossas expectativas do que é um jogo de RPG.

A minha concepção de RPG está resumida naquelas duas perguntas lá do começo: o que é preciso fazer para que saia uma boa história e para que seja divertido? Penso que se elas não forem prioridade, nenhum sistema de RPG vai funcionar direito ou qualquer sistema poderá ser falho numa mesa de jogo.

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