Fazendo drama: como levar bem uma história interativa

Dentro de uma história interativa (do tipo roleplaying game RPG), é possível identificar três tipos de estruturas dramáticas:

1) a felicidade: esse é o anti-drama por excelência. Sendo a resolução de um conflito, a felicidade numa narrativa é a identificação, o relaxamento, a certeza, o prêmio.

a) o problema: fonte de angústia ou medo, as dificuldades costumam ser a ignição do drama. É o momento de preparação ou apresentação (crescendo) do centro da história. Numa visão clássica, uma história é composta de apenas um problema (tragédia, comédia, etc.), coincidindo assim esta estrutura com o centro cronológico da narrativa. Porém, é possível criar histórias do tipo “bola de neve”, onde os problemas se adicionam, ou do tipo “labirinto”, quando um problema (resolvido) leva a outro mas sem tornar as coisas muito piores. Este ponto também é o lugar de exposição (estresse) e aparecimento/crescimento dos personagens, revelando comportamentos e aparando algumas arestas do seu momento de criação.

α) a ação: dado um conjunto de elementos suficientes, os personagens passam a agir, dando vida e movimento próprio à história. Isso não significa que eles têm o controle da situação, mas sim que passam a ter a necessidade de transitar pelo cenário para transformar a sua situação. Aqui, é possível fechar o ciclo, dando aspecto de continuidade à história: mudando a situação, cai-se ou em novos problemas (urgência) ou em relaxamento (tédio), gerando novos momentos de ação.

Vampire The Masquerade - A World Of Darkness - 01

E ainda, várias tramas podem estar acontecendo ao mesmo tempo, correspondendo a temporalidades, exigências e tensões diferentes. Personagens diferentes também podem estar em sub-tramas distintas, experimentando, cada um, ação, felicidade e drama separados.

É comum ver uma história começar no ponto (1). Note que, por questão de costume, acabamos confundindo as estruturas expostas aqui com uma sequência temporal. Entretanto, não raras vezes subverte-se esse vício cronológico iniciando-se nos pontos (a) ou (α). Nesses casos, é surpreendentemente comum passar pelos outros pontos numa tentativa de dar sentido aos fatos (o que não é necessário, pois estou falando aqui de estrutura: pode haver cinco ações seguidas ou um encadeamento de felicidade, ação, felicidade, problema, ação, etc.).

Quando estamos numa narrativa de RPG, é crucial atingir seguidamente o ponto (α) para que o conjunto de jogadores possa participar e divertir-se, deixando a história mover-se por conta própria.

Então, o tal “conjunto de elementos suficientes” requeridos por (α) poderia ser o seguinte:

– motivações pessoais para curto e médio prazo;

– antecedentes pessoais e ligações com o mundo (atentar àquelas relações em que o personagem tem poder igual ou inferior, ou, quando o contrário, àquelas que demandam cuidado por parte dele);

– problema ou coleção de problemas, normalmente com possibilidade de solução/prêmio (o que supostamente estimula quem joga). A falta de solução, porém, não acarreta em dificuldade para a narrativa, pois acaba configurando novos cenários e dramas, geralmente devido aos personagens (por alguma razão mística) se enfiarem seguidamente em problemas. (Aqui os problemas aparecem como subestrutura.);

– tédio. Mesmo que a preguiça domine o comportamento dos seres vivos, é possível que, ainda que raramente, o tédio motive transformações. Neste caso, noto dois grandes grupos de eventos: as aventuras por escolha (mais clichê, mas não necessariamente ruim) e as decisões surpreendentes (uso de energia/meios para realizar vontades esdrúxulas ou bizarras). A felicidade, enquanto estabilidade, dá condições tanto para realização das motivações pessoais quanto para criação de novos projetos. (Aqui ela também aparece como subestrutura.)

Vampire The Masquerade - A World Of Darkness - 02

Vou colocar o foco agora na questão dos problemas. Por um lado podem ser motivadores (“tenho que resolver esse desafio, salvar minha vida!”), mas por outro, se sufocarem os personagens, vão travando o andamento do jogo (“não consigo, não sei o que fazer…”). Isso não é questão de poder ou não encontrar uma solução, mas sim de deixar sempre abertas algumas vias de ação, mesmo que levem-nos a lugares errados ou becos sem saída. RPG é um fluxo narrativo cibernético: a todo momento é alimentado com dados de entrada (externos/narrador) e retroalimentado com as ações dos personagens (internas), modificando continuamente a direção do movimento da história.

O que cria esse movimento, em geral, é o drama. Como disse no início, os problemas são a ignição, o começo da combustão, mas enquanto momento estrutural (não sequencial), é o drama que faz o Jogo acontecer. Assim, os problemas devem sempre retornar à ação e nunca manterem-se como foco da história.

Para tanto, temos que prestar atenção ao “conjunto de elementos suficientes”. Em geral, são as condições materiais (antecedentes + eventos ocorridos) e sociais (ligações interpessoais) que dão poder de ação aos personagens. Os antecedente são a base que suporta um personagem, suas ferramentas e meios (que podem ser úteis ou não numa determinada história ou acontecimento). Os eventos ocorridos podem abrir portas, representadas pelos problemas para personagens-não-jogadores ou antagonistas, ou fechá-las aumentando as dificuldades, ou mesmo deixando cada vez menos caminhos para se optar (o que, de certa forma, facilita a escolha do personagem). As motivações pessoais respondem a perguntas como “por onde” e “como” o personagem vai querer andar. Esta é uma forma dele impor-se na história. Quem narra deve estar atento a isso, respeitando essas escolhas (dando espaço para elas realizarem-se) e lembrando que para além de tal drama específico, o personagem teria outras coisas para fazer. Por fim, o círculo de relações é o fluido que azeita a engrenagem material, dinamizando ou colocando mais atrito entre o que o personagem pode e o que não pode fazer, modificando seus antecedentes e motivações e levando-o a novos eventos.

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Enfim, tentei mostrar alguns pontos-chave para levar bem uma história de RPG. Pensar em estrutura, dando fôlego ou falsa calmaria, aumentando o estresse, e sempre abrindo vias de ação. Colocar o foco na ação, trabalhando com determinados elementos que compõe tanto o cenário privado quanto público do personagem. Lembrar que se não houver retroalimentação da história, se ela anda demais como o narrador quer, com respostas óbvias dos personagens, então algo está errado. Mais cedo ou mais tarde a história deixará de andar.

(imagens do livro “A world of Darkness”, 1992)

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