Avaliação de dano: comparação entre sistemas de vitalidade

Considero a simplicidade um dos fatores mais importantes na qualidade de um sistema de RPG. Isso funciona com teorias científicas, estilos de vida, e às vezes com música e literatura. É como se a termodinâmica valesse realmente para qualquer atividade onde se dispende energia (quando não se dispende?): qualquer sistema tende a um estado de mais baixa energia. É por isso que as coisas caem, a velocidade desacelera e o calor esfria.

Mas num sistema de RPG, como em outras criações ou estados organizados da vida, há um limite para o quão “menos” ele precisa ser. Em outras palavras, quando o modelo está muito despojado, ele dá conta de poucos fenômenos e acabamos ficando insatisfeitos. Certa vez resolvi criar um sistema de RPG extremamente simples: todas as regras cabiam numa página! Era simplesmente deplorável.

Obviamente, os modelos podem pecar em quase qualquer aspecto, pois, afinal, são representações do mundo real e não o mundo em si. Dá para perceber, mais ou menos, que cada RPG coloca o foco num âmbito do jogo: no drama (Vampiro), no realismo (GURPS), na fantasia medieval (AD&D), etc. Neste caso, vou analisar o sistema de dano e vitalidade de alguns jogos.

A minha especialidade é Storyteller e sempre achei muito interessante e prática toda a sua mecânica de jogo. Porém, na segunda edição de Vampiro (como em Lobisomem, Mago, etc.) faltava a diferenciação de dano letal e dano por contusão, coisa que GURPS e até mesmo Shadowrun já haviam feito há muito tempo. (Como dano agravado só tem em Storyteller não vai entrar na comparação.) Se não me engano, pois joguei pouco e há muito tempo, o AD&D 2ed. também tinha apenas um tipo de dano (e dando uma olhada rápida no D&D 4ed., isso continua assim).

Diferentes armas ou golpes parecem causar diferentes tipos de dano. GURPS faz duas diferenciações: uma referente ao tipo de uso da arma (golpe de ponta ou de balanço) e o tipo de dano que causa (perfurante ou contusão). Foi uma sacada muito legal e que parece muito bem dar conta de qualquer situação de combate. E mesmo para outros “danos”, como fadiga, este sistema já havia previsto regras lá no final da década de 80.

Apesar disso, a pretensão de realismo de GURPS às vezes incomoda, fazendo a gente ignorar metade do livro básico. Acaba sendo muito cansativo e dando brecha para os jogadores “advogados de regras” atravancarem a história. (Tinha um RPG brasileiro que, com menos páginas de regras, parecia querer ganhar o prêmio de maior complexidade: Demos Corporation. Infelizmente esse jogo está tão enterrado que não se encontra a menor informação sobre ele. Sei o que pouco lembro, e só.)

Quando a gente não copia alguma coisa de outro sistema, acaba inventando mesmo. Assim, antes de lançarem a 3ed. de Vampiro, onde acrescentaram a divisão do dano normal, eu já havia tentado complexificar o sistema pelo outro lado da moeda, os níveis de vitalidade.

O que me motivava era o seguinte raciocínio: durante combate, o personagem recebe dano em diferentes partes do corpo, não apenas num tronco que é o resumo do corpo. Se eu tranco o dedo numa porta ou perco a mão, evidentemente tenho modificadores de ação mas não os mesmos para correr e para digitar ou usar uma chave de fenda. E analisando ao longo do tempo, os modificadores que nasciam da dor deveriam ser amenizados (quando a mão amputada cicatriza, não tem mais porque interferir num salto ou num discurso).

Quando pensei nisso, inventei uma nova tabela de vitalidade para Storyteller que continha, então, cada parte do corpo e seus devidos redutores, contendo membros, cabeça e tronco. Isso acabava com o problema da amputação. Alguém que perdesse um braço não ficaria com tanto dano como se tivesse caído de um prédio (como é o caso quando se tem apenas 7 níveis de vitalidade). Isso é mais relevante no caso de um vampiro, que possui uma vida sobrenatural e quase independente de órgãos. Se fosse um mortal, perder um braço comprometeria muito o funcionamento do corpo como um todo.

GURPS tem uma solução interessante para amputação. Cada parte do corpo tem um “nível de vitalidade” proporcional ao nível de HT (vigor) do personagem. Se um golpe visa um membro, então basta conseguir a quantidade de dano correspondente àquela proporção. E como o sistema é feito inicialmente para humanos (e corpos com funcionamento parecido), então o dano cumulativo continua fazendo sentido.

Na minha cabeça, o sistema de Shadowrun resolvia a outra questão, aquela relativa aos modificadores por dor. Lendo agora, vi o seguinte: no “monitor de condição” temos a tabela de “atordoamento” e de “físico”, para dois tipos de dano. A primeira está relacionada com “exaustão, fadiga muscular e aflições semelhantes, sendo [o dano] provocado por socos e pontapés, armas de choque, granadas de concussão, fadiga por lançamento e efeitos de feitiços” (1ed., 1995). A segunda tabela dizia respeito a danos causados por “armas, explosões, lâminas e pela maioria dos feitiços”.

 

Parece que é quase isso mesmo (apesar da descrição misturar soco com cansaço). O “atordoamento” causa redutores de ação e iniciativa, e são recuperados mais rápido. Todo dano desse tipo que exceda os quadradinhos da tabela passam a ser computados como “físico”. Em GURPS, fadiga impõe redutores, mas nunca se converte em dano, e leva ao desmaio. Se não me engano, D&D não possui nenhum tipo de redutor: o personagem continua capacitado pra briga mesmo com apenas um ponto de vida.

Aquela tabela com “vitalidade” que inventei quase não foi usada. No final das contas fazia pouca diferença em termos de jogo. A primeira edição de Mundo das Trevas (2009), mantém um sistema parecido com o antigo de Vampiro, mas acrescenta que cada corpo possui uma quantidade de “vida” específica (como em vários outros sistemas) e piora a aplicação dos redutores.

Mesmo tendo passado vários anos depois dessa experiência de alteração do sistema de vitalidade de Storyteller, ainda acho que vale a pena tentar colocar a dor em cena, não exatamente como um número a diminuir os dados a serem rolados, mas como elemento de drama. No caso dos mortais isso parece mais evidente. Já com vampiros, talvez algum tipo de atordoamento seja interessante, combinando gastos de Força de Vontade com danos. Acho que Magos, Vampiros, Lobisomens, etc. já possuem boas restrições aos usos de seus poderes, mas os estados mentais que tais usos acarretam poderiam ser computados de alguma forma para serem lembrados e interpretados.

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