A importância do irrelevante

A importância do irrelevante: usando elementos contingentes numa história

“É fim de tarde. Você está andando de volta para casa. Como sempre, há pouco movimento na rua. Aquele evento misterioso continua atormentando os seus pensamentos enquanto distraidamente segue caminhando com um olhar vago pelos muros. A certa altura, você percebe um sujeito parado ao lado de um poste.”

Numa partida de RPG, quando de repente alguma coisa é descrita chamando a nossa atenção sem dúvida ela é importante. Esse é um vício amplamente arraigado no nosso modo de contar histórias, ainda mais quando são narradas verbalmente. É como se tudo que fosse “mostrado” tivesse um lugar bem definido no andamento da trama. Na verdade, na maioria dos casos, é assim mesmo que funciona: tudo que é “dito” deve reforçar a curva dramática e empurrar os acontecimentos numa dada direção.

Vampire The Masquerade - A World Of Darkness - 04Afinal, precisa ser assim? Esse jeito pragmático e tradicional de contar uma história funciona tão bem por quê? Ou será que estamos tão acostumados a ele que é exatamente isso que esperamos e tudo que saia da linha nos parece estranho, ruim ou “mal construído”?

Uma vez me disseram que toda aventura de RPG, no final das contas, é uma história de mistério. Algo está para acontecer, os jogadores tentam desvendar o que está escondido na cabeça do mestre enquanto as personagens são empurradas pelos acontecimentos e por suas escolhas lógicas. Tomando essa hipótese como verdadeira, então um bom andamento da história seria escalar a curva dramática até chegar ao seu topo e alcançar a recompensa (descobrir a verdade). Porém, sendo também um jogo, as coisas não são assim tão simples.

Na vida real, existem infinitos elementos afetando nossos sentidos. Nossa capacidade de apreensão é limitada por certos níveis mínimos de excitação, como por exemplo nosso tato com relação às roupas que vestimos: estamos acostumados a estarmos vestidos e o nosso corpo não fica o tempo todo nos dizendo “tem algo encostando no teu ombro, nas tuas costas, na tua coxa, na sola do teu pé”. Também, por um tipo de valoração cultural, a gente presta mais atenção a certas coisas que em outras (símbolos de ostentação de poder, defeitos físicos, ameaças, etc.). Dependendo da nossa obsessão, as coisas que queremos acabam aparecendo na nossa frente.

04 - a importancia do irrelevante - GURPS - 4th Edition - Basic Set p.161Entretanto, enquanto damos bola para um número finito de elementos, o resto, um número infinito de outros elementos, sempre são descartados. Provavelmente isso acontece para tornar nossa vida possível. E é justamente essa a pergunta-chave aqui: por que colocar ou excluir fatos, pessoas ou coisas irrelevantes da nossa história?

Quando se tem mais tempo para contar uma história, geralmente é possível dar espaço para elementos contingentes. Em curtas-metragens ou contos, talvez não. A não ser que a inserção de detalhes à primeira vista desnecessários venha a contribuir mais tarde com algum componente da história. O caso da literatura naturalista é um bom exemplo (nem sempre o mais divertido) do uso estrutural de detalhes do cenário, por exemplo.

Usando a descrição muito simples feita no primeiro parágrafo, um estranho no caminho para casa poderia desencadear em personagens mulheres, velhos ou crianças uma desconfiança que eventualmente escalaria para um medo mortal. Alguém parado ao lado de um poste pode não ser absolutamente ninguém importante para os acontecimentos de uma história (e não é tão raro acontecer na vida real), mas sem dúvida poderia ser usado para criar o clima necessário para induzir certa paranoia. Ou o contrário, colocar diversos elementos alegres e confortáveis pode fazer a personagem relaxar e baixar a guarda.

04 - A importancia do irrelevante - Lobisomem - Livro dos Augurios p.23O nosso costume por histórias coerentes e bem encadeadas pode ser usado para gerar desconforto e distração quando subvertemos ele. Os livros de histórias policiais e mistério cedo ou tarde acabam brincando com a atenção de quem lê, ora colocando uma pista falsa, ora mexendo na confiança que temos em certo personagem, entre outras coisas.

Uma grande quantidade elementos aparentemente desconexos pode criar o ambiente certo para a confusão, empurrando a personagem para uma ação impensada ou à prostração. Assim como pode dar espaço para uma encruzilhada na aventura: neste ponto o narrador deixou em aberto o que pode acontecer e por isso descreve e oferece diversas oportunidades desconexas. Como num jogo de xadrez, cada um consegue ver um certo número de jogada a frente. Quando há mais que dois jogadores, as possibilidades se multiplicam, fazendo com que os jogadores tenham mais participação na história que está sendo narrada (afinal, ela era para ser narrada em conjunto, não?).

Na literatura, o uso de elementos contingentes é um pouco mais tolerado. Já no cinema, ele costuma ser mais restrito. Em jogos de RPG, tudo também acaba tendo uma função bem pensada. Em videogames narrativos é comum perdermos um pouco mais de tempo se esgueirando por calabouços labirínticos, visitando mil vezes o comerciante, vagando pelo mapa esperando que algo aconteça.

04 - a importancia do irrelevante - Vampire - The Anarch Cookbook p.26Obviamente, se a gente quer contar uma história, a gente costuma ter pelo menos um começo e um fim. Encher a narrativa de fatos irrelevantes pode, na maior parte das vezes, acabar com a paciência de quem está “ouvindo”. Numa história interativa como RPG, o constante feedback dos jogadores é super importante para avaliar o quão bem a coisa tá andando.

Por fim, o uso de “irrelevâncias” não deveria ser descartado, mas cauteloso. O importante é estar atento ao efeito que essas coisas causam. Este texto chama atenção para elas porque costumam funcionar de maneira muito mais sutil e duradoura. Você pode criar confusão através de uma charada em língua desconhecida, medo colocando em cena um lobisomem horrendo ou desespero através da perda da pessoa ou objeto mais valioso do jogo. Esses são acontecimentos que causam efeitos diretos. Mas também dá para despertar emoções semelhantes através de descrições das contingências do mundo, afetando sem causa aparente a sanidade ou o equilíbrio da personagem. Nunca dá para saber qual jeito é o melhor, mas quando vemos o jogador cuidar mais da personagem ou entregar-se a ela, aí sim sabemos que estamos num caminho interessante.

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